Adoção de crianças e adolescentes com deficiência: o que é preciso saber
Psicóloga da área de adoção da VIJ-DF responde às principais dúvidas sobre o tema em entrevista
Para aumentar as possibilidades dessas adoções fora do perfil dos pretendentes à adoção no DF, a VIJ-DF criou o programa Em Busca de um Lar. A iniciativa mostra quem são os meninos e as meninas que ainda aguardam por uma família por não corresponderem ao padrão desejado de filhos – por terem deficiência ou graves problemas de saúde, idade mais avançada ou comporem grupos de irmãos. Clique aqui e conheça mais sobre o programa e as crianças inseridas nele.
A psicóloga da SEFAM/VIJ-DF Isabela Velasco esclarece nesta entrevista os principais pontos da adoção de crianças e adolescentes com deficiência ou graves problemas de saúde. Além do trabalho em processos de adoção especial, ela é mãe adotiva da Luna, que nasceu prematuramente e tem diagnósticos como os de microcefalia, paralisia e outras alterações cerebrais.
O que diferencia a adoção de uma criança com deficiência da adoção de uma criança saudável?
Primeiramente, nas adoções de crianças especiais há prioridade na tramitação. Em geral, os casos são considerados como “urgências” na SEFAM, sendo sua colocação em uma família prioridade absoluta.
Os requerentes realmente dispostos a receber seus filhos(as) independentemente da condição de saúde costumam acolher mais rapidamente. Isso ocorre porque o número de pretendentes dispostos a acolher crianças com problemas de saúde é bem menor quando comparado ao número dos disponíveis apenas para crianças saudáveis.
Quem opta por essa adoção deve estar preparado para oferecer o que à criança?
Além de amor e compromisso, os postulantes devem oferecer otimismo, no sentido de acreditarem que, embora uma criança com deficiência possa ter necessidades especiais, ela é sim capaz de se desenvolver. Os pais devem fornecer a ajuda necessária para que a criança tenha confiança em si mesma. Ainda devem estar preparados para dedicar tempo, paciência e perseverança o quanto for necessário para atender as demandas de saúde e proporcionar a estimulação adequada da criança. Embora uma boa condição financeira possa ajudar nos tratamentos que determinadas doenças demandam, o poder aquisitivo não é uma variável determinante para o acolhimento exitoso de uma criança com problema de saúde.
Quais são os impeditivos mais apresentados à adoção com deficiência?
Na cabeça dos postulantes à adoção, os maiores impeditivos são questões financeiras, questões relacionadas à falta de tempo e a junção dessas duas variáveis. Um outro aspecto impeditivo para as adoções especiais é a dificuldade de os postulantes entenderem que a adoção é simplesmente uma outra forma de tornar-se pai e mãe de um ser humano tão vulnerável e suscetível a doenças e aos demais problemas quanto eles próprios. Em que pese todos esses argumentos, cabe a essas pessoas se perguntarem: “E se esse filho fosse da minha barriga, eu encontraria tempo e alternativas para dedicar-me a ele?”
O que deve ser ponderado pelas famílias antes de adotar?
Um dos maiores desafios refere-se ao tempo. Os requerentes devem refletir se possuem disponibilidade para a criança, as atividades necessárias ao seu bom desenvolvimento, os demais membros da família e as outras tarefas do dia a dia. Quem possui um filho especial, independente de ser por adoção ou biológico, precisa estar disponível a frequentes mudanças e adaptações em suas rotinas. Deve observar ainda se possui rede de apoio para a intensa rotina de atividades, consultas e exames. Por fim, é importante estar em boas condições de saúde para assumir os cuidados de uma criança que será, de certa forma, dependente por longo tempo, ou mesmo por toda a vida em casos mais graves.
Qual a importância da rede de apoio na adoção com deficiência?
Embora a rede de apoio seja de grande importância em qualquer adoção, ela se torna ainda mais importante e imprescindível nesses casos. Toda criança demanda atenção e cuidados, mas as com problemas de saúde, muitas vezes, demandam mais. Há que se pensar em tudo que é necessário ao bom desenvolvimento dos infantes, avaliando se os membros da família e a rede de apoio terão reais condições de suprir suas necessidades.
Existe algum cuidado especial com relação às famílias que fazem essas adoções?
Durante os procedimentos de apresentação, em especial de crianças com alguma síndrome ou deficiência, damos um tempo maior para os requerentes pensarem a respeito da situação de saúde e das possíveis demandas da criança, a fim de que tenham segurança na adoção. Antes da busca por famílias, os técnicos da SEFAM também estudam a respeito da condição de saúde da criança, bem como das implicações da doença – possíveis prognósticos, evolução durante o acolhimento – para melhor apresentação do quadro à família.
A equipe sempre tenta fazê-los refletirem sobre seus desejos e expectativas, suas reais capacidades e limitações como pais e sobre os diversos tipos de problemas de saúde que teriam condições ou não de manejar. Claro que as equipes técnicas sempre desejam requerentes dispostos ao acolhimento de crianças com questões de saúde delicadas, mas a honestidade consigo mesmo nesse momento é muito importante.
Quais os principais desafios para concretizar essas adoções?
Um dos principais desafios é fazer com que os requerentes entendam o que realmente se configura como um problema de saúde. Nós nos deparamos com famílias que não estão verdadeiramente dispostas a acolher crianças com questões relevantes, mas sim com rinite, bronquite, alergias simples, etc. Além disso, as dificuldades em lidar com os problemas de saúde são muito subjetivas. Em alguns casos, uma família considera a sífilis congênita como grave; outras, como tranquila de se lidar ao longo da vida.
Pelo extenso rol de doenças, deficiências e síndromes existentes, é impossível abordá-las em sua totalidade nas etapas do processo de adoção. Mesmo que a implementação do Sistema Nacional de Adoção tenha facilitado a busca por famílias, as categorias ainda são muito amplas. Hoje se pode optar por aceitar crianças com doenças infectocontagiosas, por exemplo, mas não se pode optar por aceitar apenas algumas, o que dificulta chegar ao que os requerentes aceitam.
Existe um perfil mais recorrente de quem opta pela adoção de crianças com deficiência?
Os perfis são bem diversos, tanto no aspecto de grau de instrução, como de áreas de atuação profissional, idade, religião ou mesmo condição financeira. O que é possível perceber como recorrente é a certeza de que filhos biológicos ou por adoção são simplesmente filhos, independente de carregarem a sua genética ou não.
Como você se decidiu pela adoção de uma criança com deficiência?
Desde cedo eu já queria adotar. Ainda no namoro, conversava sobre isso com meu esposo, e a adoção se tornou parte do nosso planejamento familiar. Quanto à decisão por adotar uma criança com deficiência, posso dizer que as coisas fluíram naturalmente. Em 2012, tivemos nosso primogênito. No início de 2016, estávamos habilitados aguardando a chegada de mais um ou dois membros da família por adoção, independente de suas potencialidades e limitações.
Por trabalhar com adoção, eu tinha conhecimento de que, se manifestássemos abertura para o acolhimento de crianças com problemas de saúde, seria quase impossível adotarmos um filho saudável. Então, na prática, fizemos a escolha pela adoção de uma criança especial. Sempre tive a impressão de que teria um filho com necessidade especial. Na minha família há casos e via a possibilidade real de ter um filho biológico com alguma condição especial, mas isso não me causava medo. Na adoção não seria diferente. Pensava: “Se ninguém tem o poder de escolher a saúde dos filhos biológicos, por que escolheríamos a saúde dos filhos por adoção?”
Em 2017, tivemos nosso segundo filho biológico, que nasceu apenas com um rim e refluxo vesico-uretral para o único rim ativo. Mergulhamos em um universo que desconhecíamos. Os primeiros três meses foram muito difíceis e ele segue demandando cuidados. Com as dificuldades de saúde dele, ponderamos se devíamos manter o perfil de adoção aberto – o decidido era que a primeira criança ou grupo de irmãos apresentado seria nosso filho. Quanto mais o tempo passava, mais tínhamos a certeza do nosso desejo de mantê-lo e receber nosso filho independente de sua condição de saúde, assim como recebemos incondicionalmente nossos primeiros dois. Assim, chegou a Luna.
Como foi a adaptação da família a uma criança que possui necessidades especiais?
Os primeiros meses foram bem corridos, tínhamos inúmeras consultas, exames, avaliações, procedimentos. Meu marido ainda estava trabalhando sem redução de carga horária e eu estava fazendo tudo sozinha em licença-maternidade. Ainda tinha a questão do processo de adoção e a reforma estrutural de urgência que precisamos fazer em casa. Mas, no final, deu tudo certo. Nossos outros dois filhos se adaptaram muito bem à nova irmãzinha. A família e os amigos também a receberam de braços abertos.
Quanto aos nossos horários e rotinas, tivemos de fazer várias adaptações. Mudar as crianças para a mesma escola, alterar horários dos meninos para que eu pudesse levar a Luna aos compromissos. Apesar disso, conseguimos manter as atividades extraescolares dos nossos filhos mais velhos e o tempo de convivência familiar.
Quais são os principais desafios hoje como mãe?
A meu ver, exceto a dedicação despendida para o atendimento das demandas de saúde da criança, os desafios me parecem bem similares aos dos pais em geral. O fator tempo é uma questão, assim como para a maternidade e a paternidade atuais. A vida de todos é naturalmente muito corrida, cheia de compromissos – as pessoas querem respostas imediatas. Isso impacta ainda mais o caso de crianças que necessitam de uma atenção diferenciada.
Como mãe de três crianças, acho que meu principal desafio é conseguir dar atenção para todos. Colocá-los para dormir na hora certa tem sido desafiador, especialmente na pandemia. Devido às comorbidades dos dois mais novos, suspendemos atividades físicas que os ajudavam a gastar energia e a dormir com mais facilidade. Considero outro desafio a habilidade de resguardar um tempo para mim.
Qual conselho daria a quem pensa em adotar uma criança ou adolescente com deficiência?
Diagnóstico não é destino! Nossa filha nasceu prematuramente e tem vários diagnósticos. Hoje a ciência comprova que nós usamos um percentual muito baixo da nossa capacidade cerebral e que, com os estímulos adequados, novas áreas podem ser ativadas e desenvolvidas. E é justamente por esse motivo que, mesmo com todos os diagnósticos, nossa filha vem contornando suas limitações com muita garra.
Aos requerentes é aconselhável que reflitam bastante sobre o assunto, leiam sobre adoção, paternidade e maternidade, os diversos problemas de saúde e conversem sobre o tema com seus cônjuges e/ou demais integrantes de sua rede de apoio. Coloquem-se no lugar de pais e tentem pensar se de fato desejam e têm capacidade e disponibilidade para o acolhimento, ou se querem simplesmente “acolher mais rápido”. Reflitam se têm condições de manter o compromisso de cuidar dessa criança mesmo nos momentos de grandes dificuldades.
Embora uma criança com necessidades especiais de fato demande mais tempo de cuidados em comparação a crianças saudáveis, se você reconhecer e amar esse filho verdadeiramente como seu, esse tempo será vivenciado sem sofrimento. Na prática, adotar um filho com deficiência não é tão complicado e desgastante como se pensa, desde que esse acolhimento seja motivado pelo desejo de ter um filho para amar, e não por simples caridade.
Fonte: TJDFT